A CONTRIBUIÇÃO ENDÓGENA PARA A ESCRITA DA HISTÓRIA DA ÁFRICA NEGRA
(RESENHA)
UM LIVRO DE BOUBACAR NAMORY KEITA
Esta presente matéria é uma resenha do livro Contribuição Endógena para a Escrita da História da África Negra , escrito pelo historiador Namory Keita e publicado pela Editora Mayamba (2015) . Dr. Namory Keita nasceu no Mali, leciona história em Angola e possui uma série de livros publicados sobre história da África.
A resenha foi escrita pelo historiador Patricio Batsikama (Angola) e originalmente publicada por Muana Damba em 24 de fevereiro de 2016 no web site http://www.mundamba.com.
A resenha foi escrita pelo historiador Patricio Batsikama (Angola) e originalmente publicada por Muana Damba em 24 de fevereiro de 2016 no web site http://www.mundamba.com.
Patrício Batsîkama é responsável pela produção de documentos historiográficos de referência como As origens do Reino do Kôngo (2010), Lûmbu: a democracia no antigo Kôngo (2010) e Nação, nacionalidade e nacionalismo em Angola (2017). Alguns dos livros escritos por Patrício Batsikama estão disponíveis no acervo do projeto Aksum Livros & Cultura.
Segue abaixo a resenha de Contribuição Endógena para a Escrita da História da África Negra produzida por Patrício Batsikama.
Segue abaixo a resenha de Contribuição Endógena para a Escrita da História da África Negra produzida por Patrício Batsikama.
Introdução
No dia 09 de Agosto de 1990, Raphael Batsîkama (meu avô paterno) oferecer-me um livro intitulado “Nations nègres et Culture”.
Li o livro entre 09 e 10 de Agosto. No dia 12 do mesmo mês e ano,
fizemos um debate e ele me esclareceu o pensamento do autor (Cheikh Anta
Diop) que na verdade não me era fácil para perceber. No fim do debate,
ele entregou-me um texto (ainda não publicado) da autoria dele: “Nations nègres Sans Culture”, e solicitou-me fazer uma crítica, comparar os dois textos. Depois de duas semanas, escrevi um texto: “Democratie: le pouvoir au Kôngo n’était pas de caractere divin”1. Foi assim que decorreu a minha iniciação na HISTÓRIA DE ÁFRICA. Um pouco de Cheikh Anta Diop, e um pouco de Raphael Batsikama.
Durante
a última década da colonização – 1950-1960 – a luta para independência foi
política. Não se adquiriu a independência cultural, nem econômica. Cheikh Anta
Diop empenhou-se isoladamente na luta contra a colonização científica. Trata-se
de uma luta que requer mais capital acadêmico, talvez seja por isso que nesse
tempo ele ficou isolado. Vou agrupar a sua luta contra três teses colonialistas
que o professor Boubakar Keita trata com pormenores no seu livro:
1.
África
antiga não tinha História própria;
2.
Não
existia Estado nem Nação na África pré-colonial
3.
Superioridade
da raça branca perante a raça negra.
Será
na base destes três teses colonialistas que farei a minha releitura sobre o
livro do professor Boubakar Keita. Mas antes irei, de forma resumida, ilustrar
as imagens que a Europa colou à África. Farei, também, uma sucinta observação
sobre o livro de Cheikh Anta Diop publicado pela FCS/UAN2.
Já no fim, resumirei o livro que hoje se apresenta.
Imagens sobre África pelos Europeus
A
colonização científica de África começa, talvez, pelo próprio topônimo. Ninguém
sabe concretamente de onde vem a palavra África. Há hipótese de que vem de
Ifrikia ou Frikia que em árabe significaria “terras quentes”.3
Das representações europeias sobre África, este continente é tido como Inferno,
onde só há demônios. Não é por acaso que os habitantes desta África/Inferno
eram Negro, Etíopes, Líbios, etc. Negro significa “macaco” ou tudo que é ruim
(magia branca é boa, ao passo que a magia negra é diabólica); Etíope quer dizer
pessoa com rosto queimado. Líbio quer dizer quem vive nas terras quentes (sem
saneamento básico), etc. Aliás, Satanás era representado em preto/negro com
cauda, ao passo que Anjo era branco. Textos de sábios europeus – no século XVII
e XVIII (em plena século das Luzes) – justificam a escravatura, a inferioridade
e a coisificação do Negro. William Wilberforce lembrou isso aos escravistas
disseminados no Parlamento inglês, no século XIX.
Conceitos
desses gêneros ainda perduram no “não-pensado” discursivos dos africanos. Essa
é a luta de Cheikh Anta Diop. Tratava-se da luta contra a colonização cultural
e científica. Mas por ser de um espírito humilde e lógico, o sábio senegalês
questionou teses basilares da História, da Egiptologia e as suas releituras
oxigenaram e revitalizaram hoje a Historiografia moderna.
“Cheikh Anta Diop” traduzido pela FCS/UAN
No
ano passado adquiri um livro de Cheikh Anta Diop traduzido pela editora
universitária Mulemba em colaboração com Pedago. Depois das minhas leituras,
observei o seguinte:
1.
O
texto de Diop foi traduzido, mas não foram traduzido o tempo e a ideia do
autor. Para evitar extrapolação das suas afirmações é fundamental viajar no
“tempo de Diop”.4 A
“ideia de Diop” é simples, mas requer treino para sua articulação.5
2.
O
desconforto da comunidade lusófona em relação a bibliografia utilizada naquele
livro: ainda não há grande coisa em versão portuguesa. É necessário que se
traduza vários outros livros ainda em inglês, francês e alemão antes de ler e
compreender o egiptólogo senegalês.
3.
Em
2006 visitei IFAN e o invejável legado bibliográfico do cientista senegalês. Na
ânsia de traduzir as obras dele, foi-me aconselhado o seguinte: (a) contactar
madame Diop ou a família do autor; (b) montar uma equipa composta de
historiador, filósofo, egiptólogo, químico e filósofo que sejam lusófonos
(influentemente poliglota).
Mas
não é esse livro que se trata aqui. Vamos ao que interessa: “Contribuição
endógena para a escrita da História da África Negra”, de professor Boubakar
Keita.
“Contribuição endógena para Escrita da História”
O
livro “Contribuição endógena” é uma reedição revista (ou revisada), editada
pela Mayamba em Fevereiro de 2015 e tem 202 páginas. Dividido em três
capítulos, e estes sendo precedidos de um Prefácio e introdução, o texto tem
ainda uma conclusão e uma bibliografia.
Prefiro
começar pela bibliografia. Os oito livros conhecidos do senegalês são
referenciados na bibliografia. Mas parece-me que apenas sete (salvo o último)
entre eles foram de facto utilizados, talvez tendo em conta o tema.
Para
situar a “Contribuição endógena…” de Cheikh Anta Diop, o professor Boubakar
Keita serviu-se de auxilio de 87 livros, dos quais 16 em língua portuguesa (na
maioria tradução). Deste 16 livros apenas dois têm ligação directa com a
contribuição do sábio senegalês6.
Já é um bom início que a FCS/UAN tenha começado com a tradução de livros
determinantes de Diop ou outros que possam nos fazer perceber a sua obra.
Capítulo I.
O
autor começa por apresentar-nos o “espaço intelectual” europeu que Diop fez
face. Trata-se de um espaço onde as ideologias eurocêntricas orquestram a
superioridade racial, ausência da África na História e inércia do Negro.
Friedrich
Hegel é, de facto, o sábio alemão que influenciou a filosofia no século XIX.
Professor da Faculdade de Ciências Sociais questiona a honestidade intelectual
de Hegel quando este afirma, passamos a citar:
O
professor Boubakar Keita sublinha a perspectiva que Cheikh Anta Diop fez sobre
a posição ideológica de Hegel: “espírito”. Explica-nos claramente esse conceito
e, em nome da Lógica, lembra-nos que na História o “espírito” não “move” o
material, tal como o pensa o filósofo alemão.
Interessante
ainda é quando o autor contra-argumenta a partir de Darwing e Champolion le
Jeune cujos trabalhos tiveram destaque nas lides académicas alemãs. Tudo
indicaria – numa leitura lógica – que Hegel tenha sido enganado pelas
ideologias da época e do seu mundo exclusivista, senão estaria a
contribuir nelas de outra maneira.
Na
Filosofia (da arte), o espírito hegeliano apresenta-se como um sache
apriorístico (um objecto-valor anterior). Ora, hoje parece
lógico que toda corporização de ideia/espírito em qualquer obra de arte seja
historicamente um sache a posteriori.7
Depois da insistência ed Diop e as independências africanas de 1960, alguns
circuitos de arte aceitaram as máscaras africanas. Depois de apresentá-lo nos
Congressos mundiais sobre Filosofia e Estética, o etonismo – que é
africano/angolano – é estudado na Universidade de Friebourg (Alemanha), na
Universidade de Peking (China) e, curiosamente, o valor estético já foi
reconhecido mundialmente: o artista plástico Antônio Tomas Ana é hoje um Master
of Art and Culture. Em relação a África, ainda temos senegaleses, malianos
e sulafricanos. A tese de Hegel já não faria sentido, aqui.
O espírito
hegeliano é, aliás, derivado de um suporte metafísico egípcio. 5.000 anos
antes de Hegel, os egípcios explicavam o “espírito de Aton”. O profeta Moisés
não se sentiu envergonhado em “plagiar” os egípcios quando escreveu os
primeiros versículos do livro de Gênesis: “o espírito de Deus movia-se sobre a
face das águas…” (Gên., I:1-2). Essa versão não é hebraica. É nitidamente
egípcia e africana. Aliás, o resto dos Africanos explica a origem do mundo de
forma semelhante.8
A
superioridade de raça é concomitante a essa tese. Mas interessa-me rever a
questão da existência das Nações ou Estados instituídos na África pré-europeu.
Já foram editados oito volumes sobre História Geral de África que já
desconstroem aquelas teses. As minhas séries de Origens do Reino do Kôngo
constituem uma contribuição. Recentemente levantei um debate – na academia
brasileira sobretudo – sobre a Democracia no antigo Kôngo.
Professor
Boubakar Keita retomou a questão da luta pela independência científica
(cultural). Cheikh Anta Diop já pensava nisso em 1949 (submissão da sua
primeira Tese): Um futuro cultural do pensamento africano. Eu tenho
ilustrado isso da seguinte maneira: traduzir todas ciências, tecnologias e
práticas em línguas angolanas (africanas) seria um passo fundamental contra o
neocolonialismo científico. É preciso descolonizar os conceitos que veiculam
nas ciências.
Ainda
no primeiro capítulo, o autor faz uma “pequeno” estado das artes sobre as obras
do mestre Cheikh Anta Diop. É fundamental para entender este filho de África.
A
questão da periodização na Historiografia moderna contou muito com a
contribuição das críticas de Diop. A ruptura histórica que sucede a “longa
duração” não é contínua e linear, mas sim continua e circular. De acordo com os
ocidentais, o Império de Mali por exemplo era medieval (1235-1547), desde
Senegal até ao noroeste da Nigéria9.
Na verdade, não faria sentido para o restante de povos que não integram a
Europa civilizador. Para Diop, a História se reparte em espaço e tempo
caracterizado pela concepção dos actores que produzem os fatos. A Idade Média é
caracterizada pelo feudalismo. É aberração entre os africanos que a terra
pertença a determinada pessoa. Por isso, essa Idade Média não poderia valer
quer seja para Gana, Shongai, quer seja para Kôngo, Lûnda, nem sequer para os
Tswana, Vênda, Zulu, etc. Isto é, os africanos – e creio que os chineses, os
ameríndios, também – precisavam de procurar outras formas e conceitos para
melhor compreender a sua História.
Interessa-me
concluir o primeiro capítulo com a visão de Cheikh Anta Diop em relação a
África projetada na OUA, hoje em UA. O sábio senegalês procurou saber o papel
das regiões banhadas pelos rios. Na verdade, do Nilo até Orange passando pela
Região de Grandes Lagos e Zambeze, de Senegal até Cunene passando pelo rio Zaire
(nzâdi’a Mwânza) e rio Kwânza, as civilizações formadas ao longo dos tempos
mantiveram-se funcionais para esta Unidade Cultural. A rentabilização desta
realidade poderia ser vista em duas perspectivas:
1.
Redefinir
as relações políticas na base da Cultura, de modo a permitir que a oxigenação
independência cultural facultasse o desenvolvimento humano. Isto é, o
desenvolvimento econômico seria concomitante à cultura endógena;
2.
Olhar
as fronteiras africanas herdadas da Conferência de Berlim como barreira ao progresso
do continente. A solidariedade entre os africanos se funda na “Unidade
Cultural” e poderia ser protegida.
Cap. II e III
O
conjunto de temas e propostas metodológicas para a História de África – tal
como o fez Diop – ilustra de facto uma ruptura epistemológica. A audácia que
teve – e graças ao espírito lógico, simplicidade pedagógica e frontalidade –
permitiu que outros colegas conhecessem a démarche, fazer outras
críticas e diversificar-se em diferentes perspectivas.
Nestes
dois capítulos, o autor retoma as grandes linhas que o sábio senegalês abordou
e a receptibilidade das suas abordagens. As principais consequências consistem
no facto de encontrarmos hoje a maior parte das teses dele serem retomados
pelos Historiadores, sobretudo no que se refere à História da África, da
egiptologia e, em termo metodológica, na própria Historiografia moderna. Este é
o mérito do sábio senegalês. Subscrevo-me que seja criadas condições de estudar
o seu pensamento, e não só. Devemos estudar o pensamento de Agostinho Neto, de
Mário Pinto de Andrade, etc. para encontrarmos o Futuro cultural do
pensamento angolano. O melhor lugar para tais discussões é na academia.
Esta Faculdade é, na verdade, o lugar propício qe se deverá estudar os
pensamentos dos sábios angolanos.
Concluindo
Recomendo
este livro a todos os estudantes universitários, pouco importa a sua formação.
Aos estudantes das Ciências Sociais – História, Sociologia, Ciências Políticas,
etc. – eu estimulo ler e estudar este livro. Isto é, ler o livro de professor
Boubakar e confrontar com, por exemplo, a tradução do livro de Cheikh Anta Diop
que a FCS/UAN publicou. Para os meus estudantes específicos, este livro é
obrigatório. Devem ler, resumir o livro de forma sistematizada e expor as
ideias principais expostas neste livro.
1 Só foi em 2014 que publiquei o opúsculo intitulado: “Lûmbu: democracia no antigo Kôngo”.
2 Faculdade de Ciências Socias da universidade Agostinho Neto.
3 Batsîkama, P. (2009), Etonismo ou a razão da razão Tolerante, anexo #1.
4 Exemplo: negro
na época dele significa “macaco”. Hoje esse significado já não consta
nos dicionários. Egipto não fazia parte das civilizações africanas nos
tempos dele, hoje percebeu-se que o berço da maior civilização da
antiguidade bebeu da fonte da África negra.
5
As oitos obras do senegalês contêm, cada, uma idiossincrasia
sincategoremática. Isto, é fundamental ler todas as suas obras para
perceber a sua Ideia.
6 Gamal MOKHART (ed., 2010), História Geral da África, vol. II., São Paulo: UNESCO; KEITA, B. (2009), História da África Negra: Síntese de história política e de civilizações, Luanda: Texto Editora.
7 Batsîkama, P. (2015), Diálogos estéticos angolanos, Luanda: Mayamba
8 No meu livro Diálogos estéticos angolanos, apresentei a versão côkwe, kôngo, khoi khoi, etc.
9
Essa descrição era não somente uma aberração pela multi-temporalidade
aclamada pelos autores da História Geral de África, mas e sobretudo o
tratamento metodológico da Tradição Oral amplamente aceite desfaz essa
tese. Diop mostrou que a concepção de Idade Média não faria sentido para
os mandinga (Senegal, Costa Marfim, Sierra Leone, Mali, Burkina Faso,
etc.) que têm as suas escolas especializadas de História.


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